Lembro-me de ter chegado aos ensaios de Edgar Allan Poe durante minha breve estadia no curso de Letras. Dentre eles, o que mais se destaca, talvez, seja Filosofia da composição, em que Poe detalha o processo de escrita de O Corvo.
É um texto curto, mas que revela que escrever depende mais de técnica do que de pura inspiração. Nele, Poe coloca seus leitores dentro de sua oficina e, assim, tomamos nota dos preparativos e ferramentas de que o autor lançou mão para esculpir sua obra.
Dentre os tópicos abordados, sobressai o conceito de efeito. Segundo o autor, quando nos propomos a escrever algo, temos de ter sempre em mente o final, a conclusão, para que, assim, fiquem claras as causas e consequências que permearão nosso texto até aquele ponto, tendo em vista qual o efeito que queremos imprimir em quem nos lê.
Sendo assim, escrever é como encarar um problema matemático. O autor traça suas variáveis, seus objetivos, e os põe em um cálculo milimétrico a fim de obter aquele exato efeito a que se propõe. Olhar para a escrita dessa forma pode soar um pouco frio, mas também é reconfortante — para mim, pelo menos, como escritor iniciante — saber que existem técnicas para um fazer que nos é vendido comumente como mera inspiração.
Agora que estamos minimamente por dentro do que seja a Filosofia da composição, posso expor parte do meu processo de escrita. Ok, confesso que caí na poesia um pouco por acaso e que não domino nada de técnica poética. Sério. Vários dos meus textos são escritos como uma espécie de desabafo, como se eu estivesse vomitando no editor de texto e, sim, isso enfraquece a força poética de meus poemas — se é que posso chamá-los assim.
Dentre alguns princípios que eu sigo — no momento em que escrevo esse post — estão:
Feito é melhor que perfeito
Não ter domínio da técnica, não me impossibilita de escrever algo e, em algum momento, aperfeiçoá-lo. Acredito que só o fato de eu conseguir escrever uma unidade de texto, mais ou menos inteligível (logo virão os exemplos), já é algum tipo de mérito pessoal, por menor que pareça ser.
Escreva sobre o que você quer ler.
Ok, esse princípio aqui não é nada original. Basicamente, escrevemos sobre aquilo que conhecemos, que temos intimidade, que faz sentido à nossa subjetividade. Nada mais natural, portanto, do que escrever sobre aquilo que desejamos ver escrito, publicado. Acho que esse ponto foi elevado ao absurdo pelos escritores de fanfics, mas isso é outra história…
Caso a disciplina falhe, use (e abuse) da inspiração.
Como diz meu amigo, não é o ideal, mas acontece — e acontece muito! O maior problema aqui é a dependência de momentos assim para a produção pois a disciplina é a mãe de várias e várias virtudes. Momentos de euforia passam, então, aproveite quando se sentir assim e use toda a energia que dispõe para produzir antes que ela desapareça — depois que atingir o estado de flow , já era, fica tudo mais fácil (E agora começou a tocar Even Flow na minha cabeça).
Na dúvida, improvise!
Quem aí não se lembra dessa maldita frase proferida à exaustão pela prima do Pica-Pau? A ideia é a seguinte: só escreva. Deixe o texto tomar a forma que ele quiser. No caso de prosa, poderíamos dizer: deixe as personagens agirem por conta própria, algo do tipo.
Se você que está lendo até aqui (meu muito obrigado, inclusive) não tem ideia do que escrever, só posso dizer uma coisa: escreva e, ao final, veja o percurso — aonde isso foi dar.
Aos mais experientes, podemos chamar isso aqui de o perfeito manual da anti-escrita (e agora vocês entendem o título e o porquê de eu ter mencionado Poe no início). Mas também podemos chamá-lo de o antídoto para a procrastinação e o perfeccionismo (se eu te falar que bolei isso em cima da hora! hahaha). Sim, amigos e amigas leitores e leitoras, taí uma coisa que nos pega e paralisa por inteiro: o perfeccionismo e, com ele, a procrastinação.
Agora, vamos aos exemplos em que apliquei esses princípios.
Para isso, usarei alguns de meus textos mais lidos no site meuladopoetico.com.
Bregastorm (124 leituras no momento desse post)
Bregastorm é o tipo de poema que eu chamo de explosivo — por acreditar que algumas obras de arte devem ser bombásticas à la Deidara.
Brianstorm — dos Macacos do Ártico — não saía da minha cabeça, especialmente o modo como iniciam cada estrofe (Brian/ An I wonder/ Thunder, por exemplo, na primeira, segunda e última estrofes). Eu queria muito algo que reproduzisse esse efeito sonoro.
Nesse tempo, eu estava jogando Dungeons of Hinterberg, e queria fazer um contraste entre a Europa e o Brasil, mas aí, num pulso, acabei mudando de ideia — tudo isso enquanto escrevia as primeiras linhas. Os primeiros dois versos eram Belga/ quero ser belga, mas, no exato momento, considerei o oposto e acabei misturando tudo. Daí, nasceu Belga/ quero ser brega.
O que me fez mudar de ideia assim, tão de repente, foi a influência do Vitor Gusmão, meu amigo poeta que, em seu lirismo, exalta as belezas e riquezas do Brasil — em especial, da Amazônia.
A partir do terceiro verso, foi só ladeira abaixo! Incluí referências regionais como o açaí, um par romântico ao eu lírico (uma referência ao velho da lancha), e um ponto paradoxal: sair, viajar, mas sem sair do quarto.
A partir da segunda estrofe, apenas fui costurando as cidades e a breguice, com algumas rimas, assonâncias e aliterações — que, por si só, não fazem do texto uma obra literária, mas dão um tempero a mais.
O verso final da segunda estrofe, por exemplo, era espreita um falante, mas, para se encaixar na rima, optei por forçar um espreita um folonte.
A quarta estrofe — uma das minhas favoritas — soa como um trava língua, mesmo que não faça o menor sentido. Experimente lê-la rapidamente em voz alta, vai lá! Além disso, tem uma referência um tanto quanto forçada às sete notas naturais: Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si (ou Ti, em algumas versões). Quando digo forçada, quero dizer que a referência — bem como a rima, a aliteração e a assonância — pesaram mais na construção dos versos do que a semântica. Não optei, por exemplo, por encontrar um jeito de promover a ambos de forma a deixar o texto harmonioso e belo.
Na quinta estrofe, temos a introdução de mais uma personagem, a Roberta, e mais uma lista de breguices. Ela serve também como um tipo de contraponto à narrativa construída até então: Belga/ cansei de ser brega.
E, na sexta estrofe, temos o encerramento com uma pitada de crítica social — que costuma permear esse tipo de poesia explosiva que escrevo. Da menção à cidade europeia, vamos direto à realidade brasileira, porém, com um tom cômico.
Bolacha de motor, ou orelha de leproso (nem me pergunte de onde saiu essa), nada mais é que bolacha água e sal, daquele modelo branco, oval e achatado. Quando escrevi essa estrofe, estava pensando em chamar atenção a um problema social através de seu inverso, por exemplo: “e se em vez de traficar drogas, fossem traficados livros?” Então, mais uma vez, o toque regional veio à mente, e construí essa imagem do traficante de bolacha de motor — algo aparentemente inofensivo, mas que traz à tona uma triste realidade em nosso país.
Se você, que me acompanhou até aqui, gostou desse texto, considere comentar o que achou interessante, o que fez sentido (ou não), o que gostaria de ver por aqui nas próximas newsletters —essa é a minha primeira vez. Quais críticas você tem em relação ao que foi exposto?
Qualquer dúvida, sugestão e crítica será sempre bem-vinda, claro, desde que respeitosa.
No mais, fico muito feliz de você — caro leitor / cara leitora — ter chegado até aqui. Em breve, sairá o modus operandi de outros textos meus, caso haja interesse, além de outros tópicos sobre escrita. Então, não deixe de se inscrever e compartilhar com aquele seu amigo que também escreve — ou que quer começar.
Falou e até mais!
Bom, já que falei tanto do tal Bregastorm, seria injusto não mostrar a criatura completa, né? Então taí o poema inteiro — e se não fizer sentido, pelo menos rima.
Belga
Quero ser brega
E viajar por aí
Tomar açaí
Curtir com Seu Nair
Sem nem pra isso
Precisar sair
Londres
Bora pra longe
Pegar o bonde
Na praça da ponte
Preta do Conde
Espreita um folonte
Conte
Onde tá a fonte
Porque eu tenho
Viajado por aí
Tomado açaí
Beijado Nair
E ainda não saí
Praga
Traga toalha
Talhe a tralha
Pois talheres de palha
Não trabalha de pé
Senão Seu Zé
Erra na ré
Acredite
Dói mais em mim
Que fará sol lá em ti
Belga
Cansei de ser brega
De trazer a beca
Da Roberta
Que peca
Por não sair
Por aí
Assumir Seu Nair
E ainda cuspir
Na cara de quem
Só tentou agir
Bruxelas
Vou pras favela
Traficar bolacha
De motor nas viela
Num barco à vela
Onde a fivela não aperta
E quem acerta nem erra
Vai pra porrada com a Roberta
Olá, Lucas. Construi minha jornada na escrita com a objetividade do jornalismo, onde atuei por 35 anos. Na ficção, sempre confiei na intuição e na inspiração. Até escrever a minha primeira novela e perceber que, talvez, o conhecimento teórico e estrutural sejam importantes para azeitar o processo. Em abril, apliquei e fui aprovado no mestrado em Escrita Criativa na Universidade de Coimbra. Estou indo para lá no segundo semestre, em busca desse conhecimento.
De forma geral, concordo que devamos escrever sempre, mesmo sem saber onde vai dar. O professor Assis Brasil, da PUCRS (o mais longevo curso de Escrita Criativa do Brasil) defende um planejamento mínimo, em que a gente define o que vem em cada capítulo. E ele também diz que a personagem nunca ganha vida - no que eu, de certa forma, discordo, mas entendo o ponto dele. Às vezes a gente fica esperando que a personagem tome as rédeas e para de escrever porque isso não acontece.
Enfim, gostei muito da tua news. Estou assinado.
Oi Lucas... tenho pensado muito sobre escrita e estrutura. Gostei de ver sua obra no fim - estaca absurda por ela. E, saber que mais gente pensa nisso... O bom da estrutura é identificar o que funciona e poder replicar, isso ao meu ver. Hoje, escrevo no fôlego, na ânsia de dividir,no grito de raiva pra não surtar... acho que não dá pra ter constância dependendo de algo que não tenho o menor controle.
Obrigada por dividir.. ascendeu luzes por aqui. 🙏❤️